Atrasos em processos jurídicos, resistência à tecnologia no setor e o despejo da sua mãe - os elementos que ajudaram a fundar uma das 10 maiores legaltechs do Brasil
Em 2016, o mineiro Vinícius Marques e sua família foram despejados da casa que compraram com anos de trabalho e muito esforço devido a um erro jurídico do advogado da família. No entanto, ele viu nesse problema a oportunidade de ajudar outras pessoas a não passarem pelo que ele passou, e fundou a EasyJur, uma legaltech focada em gestão de processos jurídicos por meio de inteligência artificial.
Utilizando robôs e algoritmos baseados em aprendizado de máquina, que capturam e monitoram ações judiciais em todos os tribunais do país, a startup consolida todas as informações para automação e controle de atividades relacionadas aos processos jurídicos. Atualmente, a EasyJur disponibiliza um versão da plataforma totalmente gratuita por meio de convênio com 13 seccionais da OAB, e ajuda mais de 60 mil advogados a monitorarem prazos de ações judiciais.
O ano de 2020 foi determinante para a legaltech. Como muitas empresas ao redor do país, a startup foi impactada financeiramente pela pandemia da COVID-19. Porém, repetindo a história de buscar oportunidade nas adversidades, Vinícius percebeu que o novo cenário apresentava uma nova chance conforme o ano avançava.
“A pandemia acelerou a revolução digital na área jurídica. Com tribunais com datas de funcionamento indefinidos devido a políticas estaduais e municipais de lockdown, e processos com prazos mais incertos, a gestão correta desses processos se torna cada vez mais importante”, explica o fundador da empresa. “O que trazemos é justamente uma ferramenta para profissionalizar o escritório e integrar o negócio em uma esteira operacional mais lógica, intuitiva e fácil de gerenciar.”
Esse novo momento culminou na participação da EasyJur no programa Google for Startups Accelerator e na iniciativa Black Founders Fund, fundo de investimento do Google para startups fundadas e lideradas por empreendedores negros e negras no Brasil. Em 2021, o número de clientes e faturamento duplicaram e o número de funcionários mais do que triplicou. Para os próximos dois anos, Vinícius sonha alto: alcançar 100 funcionários e aumentar a taxa de crescimento, atingindo faturamento de R$ 8 milhões.
Como tudo começou
Vinícius tinha 13 anos e já trabalhava de carteira assinada quando sua família conseguiu alcançar o sonho da casa própria. Cerca de uma década depois, agora um empreendedor no ramo de softwares, ele recebeu a notícia: a incorporadora tinha vendido a casa da sua mãe para mais de uma pessoa. O caso foi levado à justiça, porém, devido a perda de um prazo por parte do advogado da família, a defesa não foi manifestada a tempo e um oficial de justiça bateu à porta da casa com a ordem de despejo.
Indignado, buscou apoio de um colega advogado que explicou que nada poderia ser feito. Ao perguntar como os advogados costumavam se organizar com tantos prazos e detalhes de múltiplos processos simultâneos, ouviu a resposta: planilhas e agendas impressas. Foi ali que ele percebeu que poderia utilizar seus conhecimentos no desenvolvimento de software para otimizar a gestão de processos jurídicos e tentar diminuir a probabilidade de novos casos como o dele ocorrerem.
Inicialmente, Vinícius investiu na EasyJur como um negócio paralelo, para sentir a receptividade. “No começo, enfrentei resistência por não ser do meio jurídico. Muitos advogados têm receio de que a tecnologia substitua seu trabalho. Aqui, nós não acreditamos nisso. Acreditamos que a tecnologia é uma aliada no trabalho jurídico”, conta.
Mesmo com essa resistência, a startup conseguiu um primeiro contrato com a OAB de Minas Gerais e, depois de um ano, já eram 5 mil advogados usando a tecnologia pioneira desenvolvida pela empresa. No fim de 2016, pouco mais de um ano após a fundação, o faturamento acumulado já era de R$120 mil. Foi então que Vinícius decidiu se dedicar exclusivamente ao negócio e expandir a operação.
Nos anos seguintes, Vinícius enfrentou mais um grande desafio: a maior parte do seu faturamento vinha de apenas um cliente, a OAB da seccional mineira. Em 2018, diante dos desafios financeiros e a inadimplência de alguns clientes, o empreendedor se viu tendo que tirar dinheiro do próprio bolso para conseguir pagar seus funcionários e manter a empresa operando.
Percebendo seu erro de percurso, Vinícius se mudou para São Paulo em busca de novas parcerias comerciais e o faturamento passou a dobrar ano após ano. Em 2019, conseguiu comprar um apartamento para sua mãe, fechando o ciclo em que tudo começou e revertendo completamente a crise em oportunidade.
Aceleração durante a pandemia
Com a pandemia da COVID-19, mais uma vez veio também o impacto financeiro. Logo nos primeiros meses, a EasyJur sentiu queda no faturamento e precisou demitir três funcionários. Com a resiliência, disciplina e foco que aprendeu como duas vezes medalhista mundial de Jiu-Jitsu, Vinícius soube que precisava investir em capacitação, e o Google for Startups Accelerator foi um grande aliado nesse processo.
Os dois principais desafios eram aumentar o percentual de previsão das intimações eletrônicas e criar um novo modelo para prever as movimentações do processos judiciais. Após a mentoria de empreendedores de sucesso, foram feitas melhorias na solução de inteligência artificial, no design e modelo do produto, pensando na jornada e experiência do cliente. Entre elas, um API de linguagem natural para interpretar conteúdos extensos de processos com base nas entidades envolvidas e o desenvolvimento de algoritmos de Inteligência Artificial para processar um alto volume diário de dados vindos de varas e de Diários Oficiais das esferas federal, estadual e municipal.
O resultado direto foi uma otimização na tecnologia de IA com redução de 96 para 42 segundos para a interpretação de dados, e de 80 para 16 minutos para identificar padrões de comportamento. “Eu brinco que melhor do que aprender com os próprios erros é aprender com os erros dos outros. Foi esse aprendizado único que tivemos no programa do Google for Startups. Os mentores sabem mesclar a teoria com a prática, com exemplos do mundo real”, opina Vinícius.
Olhar tanto para o ponto de vista técnico do produto, quanto para o modelo de negócios sob a ótica dos mentores foi o pontapé que a EasyJur precisava para eliminar as certezas absolutas que limitam a visão de futuro. Nos últimos meses, a empresa captou mais de R$ 1 milhão em investimentos, viu o número de funcionários aumentar de 12 para 50, inaugurou uma nova sede e teve o número de clientes e faturamento duplicados.
Potencializando empreendedores negros
Além do programa de aceleração, a startup também foi selecionada para receber investimento do Black Founders Fund, iniciativa do Google for Startups que está investindo em empresas fundadas e lideradas por pessoas negras. O objetivo é fomentar a diversidade e a pluralidade no ecossistema de inovação brasileiro.
“Eu já sofri muito preconceito. Justamente por não poder ser eu mesmo, que senti que precisava criar meu próprio negócio e fazer meu espaço. O Black Founders Fund ajuda a dar voz para muitos empreendedores talentosos que normalmente não são vistos. A iniciativa quebra o paradigma do empreendedor homem branco de 40 anos que estudou em Harvard e voltou para o Brasil já com rodada de investimento como o único exemplo de um empreendedor de sucesso”, opina Vinícius. “Negócios fundados por empreendedores negros também geram valor para a sociedade – entregam produtividade para clientes, geram emprego e desenvolvem colaboradores e parceiros. E isso precisa ser mostrado e incentivado.”
A realidade vivida por Vinícius se reflete na forma como a EasyJur se preocupa com seus funcionários. Com apoio do investimento do Black Founders Fund, foi contratada uma Head de Pessoas e Diversidade. A empresa incentiva diversidade racial, de orientação sexual, gênero e pontos de vista no quadro de funcionários.
Um futuro promissor
Atualmente, a empresa está focada em sua aceleração, focada em desenvolver soluções de inteligência artificial para jurimetria, aplicação de métodos quantitativos, especialmente estatística, no Direito, e realizando um trabalho interno para estabelecer metas dos funcionários para promover o desenvolvimento profissional individual e da empresa. A empresa também é considerada uma das dez maiores legaltechs do país pelo ranking do 100 Open Startups.
Com todas essas conquistas, o plano de Vinícius para os próximos dois anos é promissor. Hoje com 50 funcionários, a expectativa é chegar à marca de 100 colaboradores, contratando pessoas com a senioridade adequada e que estejam alinhadas com os valores da empresa. O objetivo também inclui atingir o número de 2.500 clientes e aumentar o faturamento para R$ 8 milhões.
Tudo isso seguindo uma metodologia e uma cultura de trabalho ímpares, que ressoam com a experiência de Vinícius com o Jiu-Jitsu e a história da criação da empresa: “O mais importante é entender que o erro faz parte do caminho, é uma construção e não pode te parar nunca”, reforça o fundador da EasyJur.